terça-feira, 20 de setembro de 2022

Modelo Cognitivo dos Transtornos de Personalidade de Beck e Freeman.

        Os autores, Beck e Freeman, indicam que os transtornos de personalidades podem ser compreendidos e identificados por alguns comportamentos originários de um esquema mental expressos por uma determinada pessoa. Essa proposta teórica pode ajudar na elaboração primária de uma pesquisa diagnóstica, e assim propor ações psicoterapêutica no campo da teoria cognitiva breve.

        Toda pessoa humana tem uma Visão de Si, e as demais pessoas que convivem com ela tem uma Visão sobre Ela, o que significa um pensar na Visão dos Outros, e todos temos Crenças Centrais, essas características bem detalhadas podem permitir uma atuação Terapêutica Estratégica Personalizada, sendo essa ação necessária para que a pessoa envolvida possa aperfeiçoar seu comportamento e assim conseguir um resultado mais expressivo e abrangente em seus propósitos de vida. Esse modelo teórico visa redução da sintomatologia mais aguda, bem como uma melhor qualidade de vida do sujeito em seu contexto social.

Vamos ao Modelo de Beck e Freemam a partir do perfil das características dos Transtornos de Personalidade.

1ª - Esquizóide => Visão de Si:  Auto-suficiente;

                         => Visão dos Outros: Intrusivos (pensamentos indesejáveis que podem surgir a qualquer momento, costumam ser desagradáveis, estressantes e às vezes violentos). 

                         => Crenças Centrais: Os outros não são gratificantes; 

                                                            Os Relacionamentos são confusos e indesejáveis. 

                         => Principal Estratégia: Buscar manter distância.


2ª Anti-social => Visão de Si: Percebe-se Solitário, autônomo e forte;    

                       => Visão dos Outros: Vulnerável e Explorado por demais pessoas;

                       => Crenças Centrais: Tenho o direito infringir as regras:

                                                          Os outros são otários, trouxas, etc...

                                                          Os outros são exploráveis...

                       => Principal Estratégia: Atacar, roubar, enganar, manipular...


3ª Narcisista => Visão de Si: Pessoa Especial, Superior;

                           Único merecedor de regras especiais, por isso não precisa seguir nenhuma.

                     => Visão dos Outros: Inferiores, nada além de uma plateia;

                     => Crenças Centrais: Visto que sou especial, mereço regras especiais;

                                 Está acima das regras;

                                 Se considera melhor que os outros, sempre, em tudo...

=>Principais Estratégias: Usar os outros com objetivo pessoal;

                                         Manipulação e competitividade em alta.


4ª Histriônico => Visão de Si: Glamoroso, impressionante.

                             Visão dos Outros: Seduzíveis, receptivos, admiradores.

                             Crenças Centrais: As pessoas estão para me servir e me admirar;

                                                           Elas não têm o direito de me negar meus justos direitos;

                               Eu posso seguir os meus sentimentos.

   Principais Estratégias: Usar a Dramaticidade e o Charme;

                                       Ter acessos temperamentais como choro intenso;

                                       Ter (usar) gestos suicidas.


5ª Bordeline => Visão de Si: Vulnerável, Inaceitável, Impotente;

Visão dos Outros: Perigoso, malvado;

Crenças Centrais: Posso ser abandonado e agredido;

                             Devo ficar vigilante para que os outros não me maltratem;

                             Não consigo reverter quadro desfavoráveis.

Principais Estratégias: Manipular e seduzir;

                                    Cometer atos suicidas ou parassuicidas.


6ª Esquiva=> Visão de Si: Vulnerável a depreciação;

                Rejeição social;

                Incapaz e incompetente.

                        Visão dos Outros: Críticos;

                                                      Depreciadores;

                                                      Superiores.

                         Crenças Centrais: É terrível ser rejeitado;

                                                      Se as pessoas conhecerem meu verdadeiro eu, me rejeitarão;

                                                      Não consigo tolerar sentimentos desagradáveis;

                         Principais Estratégias: Evitar situações de avaliação;

                                                             Evitar sentimentos ou pensamentos desagradáveis;


7ª Dependente=> Visão de Si: Carente, Fraco, Indefeso e Incompetente;

                             Visão dos Outros: Idealizador, Provedores, Apoiadores e Competentes;

                             Crenças Centrais: Necessita das pessoas para sobrevier e Ser Feliz;

                                                          Necessita de um fluxo contínuo de apoio e encorajamento.

                              Principais Estratégias: Cultivar relacionamentos de dependência.


8ª Obsessivo - Compulsivo=> Visão de Si: responsável, Confiável, Obstinado, Competente.

                                                 Visão dos Outros: Irresponsável, negligentes, Incompetente, Auto-indulgente.

                                                 Crenças Centrais: Eu sei que é melhor;

                                                                              Os detalhes são cruciais;

                                                                              As pessoas deveriam fazer melhor, tentar com mais afinco.

                                                 Principais Estratégias: Aplicar regras;

                                                                                      Ser perfeccionista;

                                                                                      Avaliar, controlar “deveres”, criticar e punir.

                 Esses transtornos de personalidade aqui pontuados, são apresentados por suas características peculiares demonstram um pouco da dificuldade clínica da elaboração de um diagnóstico visto que o traço comportamental pode até se manifestar mais é preciso observar sua frequência e sua forma de atuar nas relações interpessoais e grupais. Por isso minha intensão nessa transcrição não é de propor uma leitura e formulação diagnóstica, mas tenho sim a intenção de despertar sua observação para com as pessoas com as quais você se relaciona diariamente, e caso encontre esses traços com maior frequência você possa tomar consciência de como modificar algumas atitudes para que esse relacionamento possa ser o melhor possível, mas, por favor, não vá afirmar diagnóstico, isso é tarefa dos especialistas em comportamentos como psicólogos e psiquiatras a partir de uma atuação clínica repleta de eixos e de testes, bem como questionamentos que se desenvolvem a partir de uma boa anamnese, onde o manifesto comportamental e o tempo de sua frequência são fundamentais para que o protocolo clínico tenha capacidade afirmativas e proponha uma condição prognóstica capaz de traçar ações que possam direcionar um acolhimento humano. 

                Ciência se faz com investigação metodológica detalhada, e nunca por impulsos de manifestações ocorridas em uma determinadas situações ambientais, onde uma natureza provocativa possa ter estimulado manifestações distantes do cotidiano da pessoa humana com as demais pessoas envolvidas. Logo, não é a manifestação de um determinado comportamento que possibilita o diagnóstico, e sim sua expressão e manifestação mais frequente.

 Aaron Beck me deixa aqui essas duas frases: 

            "A psicoterapia cognitiva mostra que as pessoas aprendem a ser mais razoáveis umas com as outras adotando uma postura mais humilde, mais relutante quanto a exatidão da leitura de pensamentos e as suas conclusões negativas, verificando a acuidade da leitura de pensamentos, e buscando explicações ALTERNATIVAS".

            "As crenças que temos sobre nós mesmos, sobre o mundo e sobre o futuro, determinam o modo como nos sentimos: o que e como as pessoas pensam afetam profundamente o seu bem estar emocional". 


segunda-feira, 11 de julho de 2022

Sentimentos De Um Autista


 Alguém me falou que eu sou autista. O diagnóstico afastou meus colegas da escola e isso me prejudicou, eles já me tratavam mal, não gostavam de mim...

    Senti um balde de água fria derramando em cima de minhas aspirações educacionais e profissionais. Por isso não aceito o diagnóstico do autismo, quero tirar do meu prontuário medico, o rotulo de autismo diz que sou incapaz de estudar, trabalhar e ter minha vida, me dá regalias que eu não quero, não me acho especial, e nem diferente das outras pessoas, os professores tratam o aluno especial como nada, só dois professores se aproximam de mim e me ajudam, o restante me ignoram, olhar de desprezo e em diferenças das pessoas...

   As pessoas me fizeram abandonar a escola, tive depressão e agora estou tendo crise de ansiedade, mas um professor da banda musical me chamou, se importa comigo em uma figura paterna para mim e voltei a tocar e a estudar...

   Fico pensando: Como vai ser o meu lugar na empresa?

   Não quero desistir dos meus sonhos, sempre tento fazer o meu melhor para fazer minhas coisas, sempre acreditei que o reforço da recompensa. Não tenho namorada, ninguém me interessa... Bom, na verdade tenho insegurança de ser rejeitado...

   Tem outro autista na minha sala de aula, mas ele é na dele quando tenta se aproximar é de forma inadequada, mas é mais grave que eu, não quero amizade com ele, porque quero sair do grupo de excluídos, eu não sou louco...

   Apesar de que acho que a inteligência é loucura, já que todos os grandes cientistas entraram em outra dimensão que a gente comum não atinge. Já enfrentei muitas barreiras e obstáculos das pessoas, atitudes negativas, não inclusivas.

Recomendações:

 Ao final do atendimento as seguintes resoluções propostas:

1. O acompanhamento com o Profissional de Psicologia (“Eu preciso”)

2. Retomar o atendimento na CAPS

3. Promover palestra sobre o autismo na escola, a ser combinado com Grêmio Estudantil

4. Retornar para escola

5. Concluir o ensino médio

6. Fazer ensino técnico na Área de Vocacional (Tecnologia da Informação)

Identidade: Autista Masculino 18 anos

  Profissional de atendimento: Terapeuta Ocupacional

   Data de Atendimento: Junho de 2022.

     Local de atendimento: CAPS Adulto (BELÉM-PA)

Se você quiser comentar, coloque sua interpretação sobre o que é mito e o que é realidade nesse texto.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Diabetes e Comportamento Humano.

              O Diabetes é uma patologia que se manifesta em seres humanos de qualquer idade, e aqui vamos tratar da pessoa humana e não entrarei nas manifestações clínicas que podem ocorrer em outros animais, em função de que quero colocar em evidências às questões norteadoras do organismo humano, no meio ambiente onde se constrói à convivência e seus eixos de relacionamentos interpessoais, familiares e sociais. Assim irei descrever os fatores psicológicos que devem ser observados no tratamento para que o mesmo possa permitir ações comportamentais que possibilitem buscar uma constante performance terapêutica, objetivando melhoria na qualidade de vida, pois sabemos que às demandas clínicas diárias das pessoas portadoras desse diagnóstico implicam em rotinas que alteram o cotidiano pessoal, e de seu ambiente como um todo. 

              Quando diagnostica essa enfermidade, o tratamento deve iniciar imediatamente respeitando toda a orientação médica. Porém por ser uma doença com prognóstico bastante reservado face as questões evolutivas clínicas, isso pode projetar na vida dessa pessoa expressivas mudanças em seus hábitos pessoais, refletindo em suas rotinas diárias, implementado e forçando inicialmente um processo de ajustamento da personalidade que até o momento do diagnostico a pessoa não tinha como imaginar o efeito dessas novas exigências comportamentais. Assim, rotina pessoal sofre mudanças repentinas, porém bastantes necessárias para que os propósitos traçados no plano terapêutico sejam os mais eficientes possíveis, permitindo uma condição de tratamento com maior êxito. 

              Como se diz no senso comum, "na teoria, tudo é muito fácil!" Logo, por não ser tão simples  todas essas mudanças, precisamos cuidar nos momentos iniciais do tratamento com muita convicção de que algumas situações serão realizadas com dificuldades na ordem interpessoal , visto que nas próximas situações comportamentais, o paciente poderá atuar com manifestações de resistências pessoais nessa fase primária, indicando claramente que ele ainda tem seus desejos e que em alguns momentos poderão aparecer como sabotadores do tratamento, e entre esses fatores de resistências, ocorrem o da dificuldade de vivenciar disciplinas quanto aos horários determinados para medicações, bem como comportamentos nutricionais que agora devem estar de acordo com às prescrições. Sabemos que mesmo assim, o portador procura de forma consciente executar parte de sua personalidade, expressando caprichos de seus méritos pessoais e isso pode gerar inúmeras discussões interpessoais, podendo gerar conflitos com parte dos familiares que estejam em convivência direta. Logo, às mudanças comportamentais irão impor novas formas de convivências em todas às áreas de vida desse indivíduo.

              Para que todas essas mudanças comportamentais possam acontecer o portador deve ter consciência de seu estado de saúde, sendo estimulado positivamente a ter muita perseverança, uma boa técnica para isso, é estimular que ele possa definir algo para executar em seu futuro próximo, sendo um manifesto muito significativo, como concluir um curso, viajar, se relacionar afetivamente, escrever livro, poemas, etc. Com isso, ele deve perceber que os momentos presentes fazem parte de uma travessia existencial que com muita disciplina e respeito para consigo mesmo, poderá aportar em um porto seguro mais carinhoso e realista. É importante lembrar do papel da família e dos entes queridos, visto que esses devem atuar de forma consciente nas dificuldades vivenciadas e assim possam permitir produzir um diálogo satisfatório e justo no enfrentamento do prognóstico.

                 Aqui observamos que essa doença afeta o estado psicológico da pessoa portadora e de seus familiares, sendo relativamente comum manifestações de ansiedade. Quando essas se tornam intensas, surge o transtorno de ansiedade, sendo que essa patologia se manifesta a partir das preocupações excessivas e constantes, onde o nível de tensão corporal manifesta inquietude referenciada por algo negativo ou ameaçador que a pessoa acredita que irá acontecer. Esse quadro pode fazer surgir sudorese e arritmia cardíaca, sendo essa uma condição caracterizada pela falta de ritmo nos batimentos do coração, e em alguns casos o paciente poderá precisar realizar uma avaliação médica ou psicológica.

                Depressão também pode se manifestar, surgindo em decorrências das situações de vida conflitiva ou restritiva na esfera social, emocional e laboral, podendo se manifestar por vários sintomas como dificuldades de relacionamento interpessoal, agressões verbais, isolamento social, insônia, perda de apetite, disfunção sexual, tristeza acentuada, bem como negação de querer viver momentos do cotidiano. Essa patologia precisa ser tratada, e em maior gravidade, a família deve buscar ajuda de uma equipe multiprofissional.

                Quanto as comorbidades, essas podem estar presentes e agravar o nível de socialização, além de questões específicas de clínica médica. Por isso, o processo avaliativo clínico de ser acompanhando por um especialista em função das variações que podem ocorrer durante toda vida. Analisar situações de riscos que possam evoluir para quadros complexos como cegueira, amputações, acidente vascular cerebral, declínio cognitivo, o que reflete ou mesmo pode agravar os processos psicológicos, trazendo à tona a necessidade de uma reavaliação multiprofissional, objetivando elaborar um plano terapêutico conjunto que permitirá a práxis de comportamentos em prol de um prognóstico que contemple à manutenção da qualidade de vida.

                E para concluir, quero afirmar aqui, que quando encontramos um diagnóstico, seja ele qual for, é preciso lembrarmos que esse reside em um corpo, e que esse corpo é a moradia de um ser humano que tem uma história de vida genética e socioambiental, e que e a soma dessas experiências evoluíram e formaram sua personalidade. Assim posso afirmar, que um diagnóstico não é maior do que a dimensão de uma personalidade, apesar de seu reflexo sobre a mesma. Vamos no aqui e agora, facilitar nossos relacionamentos com expressões de valorizem nossos afetos e que nos permitam ampliar nossa solidariedade e gratidão, para que possamos construir relações humanas mais saudáveis e pensamentos que possibilitem ampliar nossa qualidade de vida. 

                O Afeto é vitamina natural, muda uma vida, e clinicamente visa melhorar à resposta orgânica, possibilitando um prognóstico mais saudável e sereno.

                O compromisso deve ser de todos os envolvidos no tratamento do diabetes, incluindo pessoa diagnosticada, família, equipe clínica, pois só assim seremos capazes de acolher sem discriminar à natureza diagnóstica, analisando o efeito do prognóstico no comportamento humano e seu reflexo à qualidade de vida...

                Obrigado...

                 📚🖋️❤️💪🏼🌹🤝🏼

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Por que a Guerra? Indagações entre Einstein e Freud (cartas)

 

Carta de Einstein 
Caputh junto a Potsdam, 30 de julho de 1932.
             
Prezado Professor Freud,

 A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema: Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.
 
Ademais, acredito que aqueles cuja atribuição é atacar o problema de forma profissional e prática, estão apenas adquirindo crescente consciência de sua impotência para abordá-lo, e agora possuem um vivo desejo de conhecer os pontos de vistas de homens que, absorvidos na busca da ciência, podem mirar os problemas do mundo na perspectiva que a distância permite. Quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano. Assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais do que procurar esclarecer a questão em referência e, preparando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem. Existem determinados obstáculos psicológicos cuja existência um leigo em ciências mentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetente para compreender; estou convencido de que o senhor será capaz de sugerir métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política, os quais eliminarão esses obstáculos. 

Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos. Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. Este é um fato com que temos de contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito ao seu ideal jurídico. Atualmente, porém, estamos longe de possuir qualquer organização supranacional competente para emitir julgamentos de autoridade incontestável e garantir absoluto acatamento à execução de seus veredictos. Assim, sou levado ao meu primeiro princípio; a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.                  

O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar à dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal.
 
O reconhecimento desse fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma avaliação da situação atual. Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas as graduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e de que o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria. 

 Ainda assim, nem sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver. 
                
Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? 

Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas. A experiência prova que é, antes, a chamada 'Intelligentzia' a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas a encontra em sua forma sintética mais fácil — na página impressa. 
                
Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais típica, mais cruel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossíveis qualquer conflito armado. 
                 
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação. 

Muito cordialmente, 

A. Einstein.

Carta de Freud 
Viena, setembro de 1932. 

Prezado Professor Einstein,
                 
Quando soube que o senhor intencionava convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindo de direções diferentes. 

O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra. Inicialmente me assustei com o pensamento de minha — quase escrevi 'nossa' — incapacidade de lidar com o que parecia ser um problema prático, um assunto para estadistas. Depois, no entanto, percebi que o senhor havia proposto a questão, não na condição de cientista da natureza e físico, mas como filantropo: o senhor estava seguindo a sugestão da Liga das Nações, assim como Fridtjof Nansen, o explorador polar, assumiu a tarefa de auxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerra mundial. Além do mais, considerei que não me pediam para propor medidas práticas, mas sim apenas que eu delimitasse o problema do evitamento da guerra tal como ele se configura aos olhos de um cientista da psicologia. Também nesse ponto, o senhor disse quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora o senhor se tenha antecipado a mim, ficarei satisfeito em seguir no seu rasto e me contentarei com confirmar tudo o que o senhor disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento — ou das minhas conjecturas. 

O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra 'poder' pela palavra mais nua e crua violência'? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade; o fio de minhas argumentações o exige. 

É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir a mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais. No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo — uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força. 

Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Isto tinha duas vantagens: o vencido não podia restabelecer sua oposição, e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu exemplo. Ademais disso, matar um inimigo satisfazia uma inclinação instintual, que mencionarei posteriormente. À intenção de matar opor-se-ia a reflexão de que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido. Foi este o início da idéia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve de contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança. 

Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos: a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior — a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto. Como sabemos, esse regime foi modificado no transcurso da evolução. Havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que à força superior de um único indivíduo, podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos. 

'L'union fait la force.' A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade. A fim de que a transição da violência a esse novo direito ou justiça pudesse ser efetuada, contudo, uma condição psicológica teve de ser preenchida. A união da maioria devia ser estável e duradoura. Se apenas fosse posta em prática com o propósito de combater um indivíduo isolado e dominante, e fosse dissolvida depois da derrota deste, nada se teria realizado. A pessoa, a seguir, que se julgasse superior em força, haveria de mais uma vez tentar estabelecer o domínio através da violência, e o jogo se repetiria ad infinitum. A comunidade deve manter-se permanentemente, deve organizar-se, deve estabelecer regulamentos para antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com que esses regulamentos — as leis — sejam respeitadas, e para superintender a execução dos atos legais de violência. O reconhecimento de uma entidade de interesses como estes, levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas — sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força. 

Acredito que, com isso, já tenhamos todos os elementos essenciais: a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre os seus membros. O que resta dizer não é senão uma ampliação e uma repetição desse fato. 

A situação é simples enquanto a comunidade consiste em apenas poucos indivíduos igualmente fortes. As leis de uma tal associação irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos. Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual — homens e mulheres, pais e filhos — e logo, como consequência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos. 
A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. Dessa época em diante, existem na comunidade dois fatores em atividade que são fonte de inquietação relativamente a assuntos da lei, mas que tendem, ao mesmo tempo, a um maior crescimento da lei. 

Primeiramente, são feitas, por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam a todos — isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência. Em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido — isto é, fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. Essa segunda tendência torna-se especialmente importante se uma mudança real de poder ocorre dentro da comunidade, como pode ocorrer em consequência de diversos fatores históricos. Nesse caso, o direito pode gradualmente adaptar-se à nova distribuição do poder; ou, como sucede com maior frequência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis. Ainda há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade. Isto, porém, propriamente faz parte de uma outra correlação e deve ser considerado posteriormente. 

Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica. Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana revela uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra, ou diversas outras, entre unidades maiores e menores — entre cidades, províncias, raças, nações, impérios —, que quase sempre se formaram pela força das armas. 
Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes. É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. Algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram senão malefícios. Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente. 

Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz 'perene', pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras. Contudo, ela falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência. Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas. O resultado de todos esses esforços bélicos consistiu, assim, apenas em a raça humana haver trocado as numerosas e realmente infindáveis guerras menores por guerras em grande escala, que são raras, contudo muito mais destrutivas. 

Se nos voltamos para os nossos próprios tempos, chegamos a mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto. As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. A Liga das Nações é destinada a ser uma instância dessa espécie, mas a segunda condição não foi preenchida: a Liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo se os membros da nova união, os diferentes estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as perspectivas nesse sentido. 
A instituição da Liga das Nações seria totalmente ininteligível se se ignorasse o fato de que houve uma tentativa corajosa, como raramente (talvez jamais em tal escala) se fez antes. Ela é uma tentativa de fundamentar a autoridade sobre um apelo a determinadas atitudes idealistas da mente (isto é, a influência coercitiva), que de outro modo se baseia na posse da força. Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator. 

As idéias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas idéias podem exercer. A história nos ensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a idéia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras — idéia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos —, foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos, embora, é claro, não suficientemente forte para evitar dissensões bélicas entre as diferentes partes da nação grega, ou mesmo para impedir uma cidade ou confederação de cidades de se aliar com o inimigo persa, a fim de obter vantagem contra algum rival. A identidade de sentimentos entre os cristãos, embora fosse poderosa, não conseguiu, à época do Renascimento, impedir os Estados Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar o auxílio do sultão em suas guerras de uns contra os outros. E atualmente não existe idéia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais nacionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto. Algumas pessoas tendem a profetizar que não será possível pôr um fim à guerra, enquanto a forma comunista de pensar não tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo, em todo caso, está muito remoto, atualmente, e talvez só pudesse ser alcançado após as mais terríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso a tentativa de substituir a força real pela força das idéias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência. 

Passo agora, a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita de que neles exige em atividade alguma coisa — um instinto de ódio e de destruição — que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um instinto dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. Permita-me que me sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulada pelos que trabalham na área da psicanálise? 

De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos 'eróticos', exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra 'Eros' em seu Symposium, ou 'sexuais', com uma deliberada ampliação da concepção popular de 'sexualidade' —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado — ou, como dizemos, amalgamado — por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de auto-preservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais, é, na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los. 

Se o senhor quiser acompanhar-me um pouco mais, verá que as ações humanas estão sujeitas a uma outra complicação de natureza diferente. Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. Isto, há muito tempo, havia sido percebido por um especialista na sua matéria, o professor G. C. Lichtenberg, que ensinava física em Göttingen, durante o nosso classicismo, embora, talvez, ele fosse ainda mais notável como psicólogo do que como físico. 

Ele inventou uma 'bússola de motivos', pois escreveu: 'Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo, "pão — pão — fama" ou "fama — fama — pão".' De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar — uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de escusa para os desejos destrutivos; e, às vezes — por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição — é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros. 

Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano. Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico. 

Isto serviria de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que a nossa resistência, para a qual também é necessário encontrar uma explicação. Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física? 

Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. Segundo se nos conta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à tranquilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. 

Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas fronteiras. Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. 

Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: 'Ama a teu próximo como a ti mesmo.' Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala. 

Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade, leva-me a uma outra sugestão para o combate indireto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes. 

É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis à formação de uma classe desse tipo. A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exequíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha. 

O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente. É melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão. Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada. Sem dúvida, é possível o debate em torno de alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparados para a destruição impiedosa de outros, esses outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum desses aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso. Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude. 

Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural (Sei que alguns preferem empregar o termo 'civilização'). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais rapidamente do que as camadas superiormente instruídas. Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda não nos familiarizamos com a idéia de que a evolução da civilização é um processo orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequentes vantagens e perigos. 

Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades. 

E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra. 

Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com a expressão de toda estima, subscrevo-me, 
Cordialmente, Sigm. Freud

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

 Por que hoje a revolução não é possível?

Para decifrar a alta estabilidade do sistema de dominação liberal é preciso entender como os atuais mecanismos de poder funcionam. O comunismo como mercadoria é o fim da revolução

BYUNG-CHUL HAN

Quando debati com Antonio Negri, um ano atrás, no Berliner Schaubühne, ocorreu um embate entre duas críticas do capitalismo. Negri estava entusiasmado com a ideia da resistência global ao império, ao sistema de dominação neoliberal. Ele se apresentou como revolucionário comunista e se autodenominava professor cético. Clamava com ênfase à multidão, à massa interconectada de protesto e revolução, a quem confiava a tarefa de derrotar o império. A posição do comunista revolucionário me pareceu muito ingênua e fora da realidade. Por isso tentei explicar para Negri por que as revoluções já não são mais possíveis.

Por que o regime de dominação neoliberal é tão estável? Por que há tão pouca resistência? Por que toda resistência se desvanece tão rápido? Por que a revolução já não é mais possível apesar do crescente abismo entre ricos e pobres? Para explicar isso é necessária uma compreensão adequada de como funcionam hoje o poder e a dominação.

Quem pretende estabelecer um sistema de dominação deve eliminar resistências. Isso é certo também para o sistema de dominação neoliberal. A instauração de um novo sistema requer um poder que se impõe frequentemente através da violência. Mas esse poder não é idêntico ao que estabiliza o sistema por dentro. É sabido que Margaret Thatcher tratava os sindicatos como o “inimigo interior” e os combatia de maneira agressiva. A intervenção violenta para impor a agenda neoliberal não tem nada a ver com o poder estabilizador do sistema.

O poder estabilizador da sociedade disciplinadora e industrial era repressivo. Os proprietários das fábricas exploravam de forma brutal os trabalhadores industriais, o que ocasionava protestos e resistências. Nesse sistema repressivo são visíveis tanto a opressão como os opressores. Existe um oponente concreto, um inimigo visível diante do qual a resistência faz sentido.

“O caráter estabilizador do sistema já não é repressor, mas sedutor; ou seja, cativante!”

O sistema de dominação neoliberal está estruturado de uma forma totalmente diferente. O poder estabilizador do sistema já não é repressor, mas sedutor, ou seja, cativante. Já não é tão visível como o regime disciplinador. Não existe um oponente, um inimigo, que oprime a liberdade diante do qual a resistência era possível. O neoliberalismo transforma o trabalhador oprimido em empresário, em empregador de si mesmo. Hoje cada um é um trabalhador que explora a si mesmo em sua própria empresa. Cada um é amo e escravo em uma pessoa. Também a luta de classes se torna uma luta interna consigo mesmo: o que fracassa culpa a si mesmo e se envergonha. A pessoa questiona-se a si mesma, não a sociedade.

É ineficiente o poder disciplinador que com grande esforço oprime os homens de forma violenta com seus preceitos e proibições. É essencialmente mais eficiente a técnica de poder que se preocupa com que os homens por si mesmos submetam-se à trama da dominação. Sua particular eficiência reside no fato de não funcionar através da proibição e da subtração, mas através do deleite e da realização. Em lugar de gerar homens obedientes, pretende fazê-los obedientes. Essa lógica da eficiência é válida também para a vigilância. Nos anos oitenta, se protestou de forma muito enérgica contra o censo demográfico. Os estudantes até mesmo foram para as ruas. Da perspectiva atual, os dados necessários como função, diploma escolar ou distância do local de trabalho são ridículas. Era uma época na qual se acreditava ter pela frente o Estado como instância de dominação que arregimentava informação das pessoas contra sua vontade. É precisamente esse sentimento de liberdade que torna impossível qualquer protesto. A livre iluminação e o livre desnudamento próprios seguem a mesma lógica da eficiência que a livre auto exploração. Protestar contra o que? Contra você mesmo?

É importante distinguir entre o poder que impõe e o que estabiliza. O poder estabilizador adquire hoje uma forma amável, ‘smart’, e assim se faz invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer é consciente de sua submissão. Acredita ser livre. Essa técnica de dominação neutraliza a resistência de uma forma muito eficiente. A dominação que submete e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável, é imunizado contra toda a resistência porque faz uso da liberdade, em lugar de submetê-la. A opressão da liberdade gera resistência de imediato. Ao contrário, isso não ocorre com a exploração com a liberdade. Depois da crise asiática, a Coreia do Sul estava paralisada. Veio então o FMI e deu crédito para os coreanos. Para isso, o Governo teve que impor a agenda neoliberal com violência contra os protestos. Hoje mal existe resistência na Coreia do Sul. Pelo contrário, predomina um grande conformismo e consenso com depressões e síndrome de Burnout. Hoje a Coreia do Sul tem a mais alta taxa de suicido do mundo. A pessoa emprega a violência contra ela mesma, em lugar de querer mudar a sociedade. A agressão ao exterior que teria como resultado uma revolução cede diante da autoagressão.

"Cada um é amo e escravo. A luta de classes se torna uma luta interna, consigo mesmo!"

Hoje não existe nenhuma multidão cooperativa, interconectada, capaz de se transformar em uma massa de protesto e revolucionária global. Pelo contrário, a solidão do auto empregado isolado, separado, constituiu o modo de produção presente. Antes, os empresários competiam entre si. Entretanto, dentro da empresa era possível existir solidariedade. Hoje todos competem contra todos, também dentro da empresa. A concorrência total ocasiona um enorme aumento da produtividade, mas destrói a solidariedade e o sentido de comunidade. Não se forma uma massa revolucionária com indivíduos esgotados, depressivos, isolados.

Não é possível explicar o neoliberalismo de um modo marxista. No neoliberalismo não existe lugar nem sequer para a “alienação” a respeito do trabalho. Hoje dedicamo-nos com euforia ao trabalho até a síndrome de Burnout [fadiga crônica, ineficiência]. O primeiro nível da síndrome é a euforia. Síndrome de Burnout e revolução se excluem mutuamente. Assim, é um erro pensar que a multidão derrotará o império parasitário e instaurará a sociedade comunista.

E o que ocorre hoje com o comunismo? O sharing (compartilhar) e a comunidade são constantemente evocados. A economia dosharing deve suceder a economia da propriedade e a posse. Sharing is caring [compartilhar é cuidar], diz a máquina da empresa Circler no novo romance de Dave Eggers, The Circle. Os paralelepípedos que formam o caminho até a central da empresa Circler contém máximas como “busque a comunidade” ou “envolva-se”. Cuidar é matar, deveria dizer a máxima da Circler. É um erro pensar que a economia do compartilhar, como afirma Jeremy Rifkin em seu mais recente livro, A Sociedade do custo marginal nulo, anuncia o fim do capitalismo, uma sociedade global, com orientação comunitária, na qual compartilhar terá mais valor que possuir. É exatamente o contrário: a economia do compartilhar conduz, em última instância, à comercialização total da vida.

A mudança, realizada por Rifkin, que vai da posse ao “acesso” não nos libera do capitalismo. Quem não tem dinheiro, tampouco terá acesso ao sharing. Também na época do acesso continuamos vivendo no Bannoptikum, um dispositivo de exclusão, no qual os que têm dinheiro ficam excluídos. O Airbnb, o mercado comunitário que transforma cada casa em hotel, rentabiliza até mesmo a hospitalidade. A ideologia da comunidade ou do comum realizado em colaboração leva à capitalização total da comunidade. A amabilidade desinteressada já não é mais possível. Em uma sociedade de valorização recíproca a amabilidade também é comercializada. A pessoa é amável para receber melhor valorização.

Na economia baseada na colaboração também predomina a dura lógica do capitalismo. De maneira paradoxal, nesse belo “compartilhar” ninguém dá nada voluntariamente. O capitalismo chega em sua plenitude no momento em que o comunismo é vendido como mercadoria. O comunismo como mercadoria: isso é o fim da revolução.

Byung-Chun Han é filósofo.


sábado, 5 de fevereiro de 2022

Dia de Iemanjá, um pensar contra o preconceito religioso


                                   Dia de Iemanjá, um pensar contra o preconceito religioso.


                  Hoje, 02 de fevereiro de 2022. Não sei o que representa no jogo do bicho, porém uma coisa é certa, é o dia Iemanjá, uma entidade de forte referência no Candomblé, Mina e Umbanda, além de Exú, Oxolá, Ogum, Oxóssi, Xangô e Iansã, Essas entidades no Brasil são os mais frequentes nos rituais. 

                  Essa entidade feminina tem o Mar como sua residência eterna e assim se destina à proteger todos os navegantes que precisam de sua energia vitalizadora e espiritual. 

                  Para compreendermos o que isso representa no pensamento e na fé afro descendente, convido você imaginar comigo que estamos sendo embarcados, na marra, no porão um navio sem conhecemos ninguém e que além de acorrentados corporalmente, também estamos sendo humilhados em nossas almas, pois não queríamos estar passando por isso tudo que agora tomamos consciência de ser um jogo desumano e bastante violento, pois além de estarmos aqui presos sem o menor respeito aos nossos corpos, ainda lembramos dos gritos das demais pessoas e nossos parentes no momento da invasão do local de nossas moradias e que eles, os invasores, chamam de tribo. Uma coisa é certa, estamos presos, não sabemos para onde iremos, mas temos plena convicção de que nossos parentes que resistiram em sua grande maioria foram assassinadas. 

                  Continuamos usando nosso imaginário... E então sabemos agora que essa invasão em nosso território representa um jogo de interesse comercial batizada de escravatura, ou seja, a partir desse momento somos escravos, somos mercadorias humanas, e como toda mercadoria, estaremos expostos em um ambiente público em que as pessoas com dinheiro ou patrimônios vantajosos irão nos apreciar e farão escolhas, que consumadas, virá de uma vontade de fora pra dentro neutralizando minha possibilidade de escolha, e a partir daí não teremos mais direitos nem de caminharmos livremente, degustar alimentos de nossas escolhas, e talvez de nunca mais voltarmos a ver nossos pares afetivos e nossas casas, e nem à nossa pátria... 

                  Porém uma coisa certa, eu e você lutaremos para não manter nossa fé que se caracteriza por nossos orixás e erês, temos mais de quatrocentos, pois nossas entidades são e serão sempre nossas soberanas espirituais, pois não nos abandonam, visto que se permitem manifestar incorporadas em nossos corpos, e assim também deveremos não deixarmos manter o apreço musical e cultural de nossas danças, visto que nossos ancestrais nos ensinaram e sempre determinaram que deveríamos seguir, independentemente de onde quer que estamos vivendo, pois essa é ação subjetividade de nossa alma e que não estar e nem nunca estará à venda, visto que nossas almas terão que resistir a esse outro Deus e outras culturas, em função de que somos um povo que acredita no culto politeísta, onde Deuses múltiplos e poderosos expressam-se no universo natural. 

                  Agora saindo do imaginário, voltando para a nosso realidade, essa demonstra que vivemos em um país cruel por ser repleto de preconceitos, e por isso precisamos combater essa estupidez de discriminarmos as religiões afro descendentes, visto que elas não surgiram pela demonização da fé, mas sim para expressar relações de passados distantes onde os conhecimentos ancestrais passaram por inúmeras gerações e ainda continuam e continuarão existindo. O embarque das pessoas não trouxe apenas corpos, mas toda essas situações de cultura e de espiritualidade.  

                   O Brasil é um Estado Democrático e Laico de Direito,  por isso devemos conversar e conservar à identidade cultural e ancestral de todos que vivem em nosso país, independentemente de suas religiões. Esse direito constitucional nos coloca em plena liberdade para pensarmos e assim combatermos esse arbítrio predador que é o preconceito, pois somos um povo multicultural desde do inicio de nossa colonização, e hoje precisamos nos permitir um país melhor, que produz harmonia civilizatória para os dias atuais.. 

                 O navio trouxe pessoas e culturas, não podemos tolerar o preconceito religioso.📚🌹